DEAN KARNAZES ENCHEU A CARA DE TEQUILA no seu aniversário de 30 anos, em Agosto de 1992. Voltou para casa trançando as pernas e infeliz com a vida que levava: engravatado num emprego chato, lutando para subir na vida, seguindo a boiada sem questionar o porquê. Nos fundos de casa, achou um velho par de ténis. Fazia muitos anos que ele não os usava para uma corrida - desde os tempos de colégio, quando participava de corridas de montanha e provas de atletismo. Vestiu os sapatos e tirou as roupas, deixando só as cuecas samba-canção e a camiseta. E saiu correndo para parar só 48 km depois. Ele se sentiu ridículo, mas também feliz como há tempos não acontecia. E percebeu que tinha dentro de si um potencial secreto, esperando para ser descoberto e explorado. Desde então, Dean vem desafiando todos os limites imagináveis da resistência humana, sem nunca encontrar o seu próprio. Correu 560 km sem parar (levou mais de três dias).
E as tácticas mentais para cruzar a linha de chegada numa prova particularmente difícil? Uso uma técnica que chamo "passos de bebé". Na primeira vez que corri 320 km, houve um momento no 260 em que eu não conseguia levantar da sarjeta. Já tinha corrido 40 horas sem parar e mal ficava de pé. Pensei: "Não vou conseguir correr mais 60 km". Então mudei meu paradigma. Disse a mim mesmo: "Não pense nos 60. Foque em se levantar". Tentei, tentei e finalmente fiquei em pé, e comemorei essa vitória. "Ok, agora vá até aquela placa no fim da rua". Fui e disse: "Muito bem, agora até aquele poste". Fiz isso incontáveis vezes e depois de dez horas cruzei a linha de chegada. - Pergunta técnica. Bolhas, você as estoura ou não? Estou com duas bolhas agora, porque corri na chuva e as meias ficaram molhadas. Uma delas eu estourei, a outra não. Se estiver tão inchada a ponto de doer, estoure. Mas se estiver baixa e não piorar quando você coloca o ténis, eu acho melhor tentar correr sem mexer nela. A melhor maneira de tratar uma bolha é não tê-la. Gosto de usar Bodyglide (pomada importada, feita com triglicérides, aloe vera e vitamina E, que lubrifica a pele e elimina a abrasão) nos pés. Tenho amigos que usam talco para manter os pés secos. Eu não gosto. - O que você bebe e come durante seus treinos de corrida? Eu corro com uma mochila de hidratação com bebidas desportivas. Levo umas barras energéticas e às vezes um pouco de "misturinha" de castanhas e frutas secas. Também levo dinheiro, assim posso me reabastecer em algum lugar no meio do caminho, se precisar. - Você não correu durante 15 anos. Já parou para imaginar o que teria acontecido se nunca tivesse parado? Que distâncias você estaria correndo hoje? É assustador imaginar [risos]! Sim, fiquei um tempão sem correr. Mas, uma vez um corredor, sempre um corredor. O espírito não desaparece. - O corpo humano é capaz de feitos extraordinários, você diz. Você acredita que a carga a que sujeita seu corpo - correndo mais do que qualquer ser humano já correu, dormindo somente quatro horas por noite - cobrará seu preço? Se eu achasse que estou judiando do meu corpo, eu pararia. Fui examinado, analisado, cutucado, e segundo todos os testes, estou aguentando muito bem. Não há sinais de danos, ao contrário: quanto mais duro eu treino, mais forte eu fico. - Chris Carmichael te comparou a Lance Armstrong. No que você se identifica (ou não) com ele? Lance é um ídolo, mas somos bem diferentes. Ele sempre foi um atleta profissional, enquanto eu estudei, fiz faculdade e depois trabalhei no mundo corporativo por muitos anos. Corrida e desporto eram, até recentemente, um hobby, algo que só agora se tornou o meu meio de vida. Acho que Lance e eu temos em comum a resistência mental. Admiro o ciclista tremendamente, não só porque ele é um grande atleta, mas também porque arrecadou milhões de dólares para as pesquisas sobre o cancro. - Como é sua recuperação? Quanto você precisa descansar depois de uma corrida de 60 ou de 120 km? Depois de uma corrida de 60 km, estou bem para correr no dia seguinte. Descobri que meu "limiar" é 110 km. A partir daí, preciso de alguns dias para me recuperar. E sou fã de carteirinha dos banhos de gelo para ajudar a recuperação - Qual foi sua estratégia durante o Endurance 50? Você tinha menos de 24 horas para estar pronto para outra maratona... Eu e o Chris Carmichael estabelecemos como objectivo fazer as maratonas em quatro horas, com uma frequência cardíaca média de 110 batimentos por minuto ou menos, e conseguimos. O grande truque da recuperação era não ultrapassar demais o meu limite, para não entrar num défice que pudesse comprometer a maratona do dia seguinte. - Qual foi seu tempo médio nas 50 maratonas? Acho que foi um pouco abaixo de quatro horas. Algumas das maratonas eram em trilha, com muitas subidas e descidas e terreno técnico, e fez muito calor em algumas delas (na do Arizona fez 40ºC). Acho que a mais lenta eu fiz em 4h46min, era uma maratona em trilhas bem difíceis. Lembro que corri a maratona de St. George, em Utah, em 3h20min, com um batimento médio de 120. Fui mais rápido em Nova York, mas minha frequência cardíaca estava bem mais alta. Tudo bem - era a última e eu podia dar tudo. - Seu tempo na maratona de Nova York é três horas. Você faz treinos de velocidade? Cheguei em três horas depois de ter corrido 49 maratonas nos 49 dias anteriores. Talvez, se minhas pernas estivessem descansadas, eu poderia ter sido mais rápido, não sei. A verdade é que nunca treinei para essa distância, só treino para as provas com mais de 100 km. - Você acaba de terminar o Summit to Sydney, um desafio em que correu 590 km em seis dias, cruzando a Austrália. Como foi? A ideia era eu subir correndo a montanha mais alta do país, a Kosciusko, e dali correr 590 km até Sydney. Disseram-me que a partir do cume era só descida, então estimei que conseguiria correr 90 a 100 km por dia. Só que o percurso acabou se mostrando extremamente montanhoso. Subimos e descemos a Great Divide duas vezes, grande parte por estradas de terra. Tive que me esforçar muito para cobrir as distâncias que precisava cobrir. Foi uma grande aventura, em vários aspectos. É para isso que eu vivo! - De todos os desafios que você enfrentou, qual foi, até hoje, o mais difícil? Acho que a maratona até o pólo Sul continua sendo a mais dura. Corri o mais rápido que pude e levei nove horas para terminar. As condições eram atrozes. A neve era tão alta que tornava quase impossível correr. E eu fiz de ténis! Era a primeira edição dessa corrida, que nunca mais foi realizada. Ainda bem - era incrivelmente difícil e perigosa. - Ainda há reservas não exploradas dentro de você? Muitas! Ainda não achei meu limite e vivo de acordo com as palavras do escritor T. S. Elliot: "Nunca pare de explorar". A vida é muito curta para a vivermos de qualquer outra maneira.
em: http://gooutside.terra.com.br/Edicoes/25/artigo52161-5.asp